segunda-feira, junho 30, 2008

" Os sete sapatos sujos. "

"Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos.
À porta da modernidade precisamos de nos descalçar.
Eu contei "Sete Sapatos Sujos" que necessitamos de deixar na soleira da porta dos tempos novos.
Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico:

Primeiro Sapato: a ideia de que os culpados são sempre os outros.

Segundo Sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho.

Terceiro Sapato: o preconceito de que quem critica é um inimigo.

Quarto Sapato: a ideia de que mudar as palavras muda a realidade.

Quinto Sapato: a vergonha de ser pobre e o culto das aparências.

Sexto Sapato: a passividade perante a injustiça.

Sétimo Sapato: a ideia de que, para sermos modernos, temos que imitar os outros."

Mia Couto

quarta-feira, junho 25, 2008

Desencontros


Fez-me lembrar de ti esta imagem...Algo perdida, algo turva... A cadência da água como a cadência da vida que se te manifestou um pouco árdua e trabalhosa desde o início. No entanto, cá estás a fazer-lhe frente. Ainda que com desencontros e com aquelas contradições interiores com que nos surpreende de vez em quando, soubeste e continuarás a saber , à tua maneira, torná-la única e bonita. Não desistas e luta pelo o que queres. O que perdes por desistires tornar-se-á muito mais destrutivo do que aquilo que eventualmente possas perder se lutares.

Beijinho sereno à espera no canteiro de sempre ;)

terça-feira, junho 24, 2008

Medo de quê?

" Aquele que escolhe Cristo não está só, ainda que tenha sido abandonado e traído por amigos e conhecidos; o Senhor está a seu lado, dá-lhe força, anima-o e livra-o de todo o mal.
Animados por esta certeza temos medo de quê? "

quarta-feira, junho 18, 2008

O Vagabundo na Esplanada

(Algo longo, mas não desistais de o ler.)

O Vagabundo na Esplanada

A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspectiva de observação, levava os transeuntes a afastarem-se de esguelha para os lados do passeio. Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo. Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisa interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada. Aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta. Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade. Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade. Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar. O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada lhes acontecia. Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fontes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:
- Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade. E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas. Sem dar por tal, o homem seguia adiante. Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscenciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o sol da tarde quente de Verão. A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se. Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem estar. Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação. Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a . Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler. O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: “ Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!” Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada. Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
- Não pode...
E calou-se.
O homem olhava-o com atenta benevolência.
- Disse?
- É reservado o direito de admissão – tornou rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
- Que direito vem a ser esse?
- Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
- E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe. - Talvez a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu delicadamente:
- Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

Manuel da Fonseca, «O Vagabundo na Esplanada», Tempo de Solidão, Lisboa, Arcádia 1973

quarta-feira, junho 04, 2008

A minha Pátria

Estou aqui de passagem. Alguns conhecem-me para além do visível, outros sabem de mim apenas o meu exílio, que é o corpo ou figura que alberga a minha alma. Do corpo cuido apenas o suficiente e o necessário para poder permanecer condignamente nesta sala de espera o tempo que me é facultado. Nele estou emprestada, o corpo não é meu, a alma é que é minha.
Tal como todos os exilados, que não pertencem à pátria que os acolhe, também nós não pertencemos à pátria dos corpos e do mundo onde eles se movimentam. Não significa, todavia, que permitamos tomar conta deles a inércia e a lassidão. Qualquer exilado faz do sonho, da alegria e da vontade de regressar às origens causas justas e imperativas para se manifestar laborioso no sucesso desse objectivo.
A passagem pelo exílio é uma prova de resistência e fidelidade, que nos torna ou não merecedores da verdadeira e única Pátria: " e depois deste desterro nos mostrai Jesus..."